Conto Sentimentos Vazios
A pandemia
Hoje
foi um dia diferente na escola. Foi um dia de despedidas. Não que o ano letivo
estivesse terminando, pelo contrário, o ano ainda estava no início, mas por
conta de uma pandemia provocada por um novo coronavírus, o SARS-CoV-2, vamos
ficar em quarentena. As aulas foram canceladas e os alunos foram dispensados
por tempo indeterminado. Foi uma grande surpresa para todos descobrir o quanto
somos vulneráveis.
Depois
de me despedir de meus amigos com um abraço, o último durante um bom tempo, fui
para casa.
Mal
havia chegado quando recebi uma mensagem do Thales, meu namorado. Ele não tinha
ido para a escola hoje. Ficou sabendo da suspensão das aulas através do grupo
de WhatsApp da nossa sala.
Thales
queria saber como ficaríamos durante a quarentena. Se teríamos que nos afastar
também. Eu respondi dizendo que iria conversar com os meus pais a respeito.
Se
tinha alguém que entendia sobre quarentena, eram os meus pais. Eles tinham uma
doença genética chamada XP, Xeroderma pigmentoso, que os impedia de sair na luz
do sol. Qualquer raio solar poderia deixá-los com bolhas ou queimaduras na pele
e com um alto risco de pegarem câncer, por isso eles só saíam de casa durante à
noite.
Quando
eu era criança, não conseguia entender porque meus pais não saíam comigo. Eu sempre
fui levada para a escola pelo motorista e a babá era quem me levava para os
passeios à luz do sol. À medida que fui crescendo, eu preferia sair apenas à
noite, como os meus pais, mesmo que eles insistissem para eu levar uma vida
normal.
No
início da adolescência, eu coloquei na cabeça que tinha XP também e me recusava
a ir para a escola, alegando que me sentia doente quando estava exposta ao sol.
Meus pais me levaram a uma psicóloga que atendia no horário noturno e
aproveitaram para me contar um segredo de família: eu era adotada.
Meus
pais biológicos eram funcionários da mansão em que meus pais adotivos moravam.
Quando eu tinha dois anos, ambos morreram em um acidente de carro. Eu fui a
única que sobrevivi, e os Davies me adotaram.
Arsen
Davies e Islany Davies são meus pais adotivos. Descobrir que eu fui adotada me
trouxe uma série de sentimentos confusos, mas, no meu íntimo, eu me sentia
aliviada, pois isso significava que minhas chances de ter Xeroderma pigmentoso
eram praticamente nulas.
E
meu amor por meus pais de certa forma aumentou. Pois em nenhum momento eles me
trataram como se eu não fosse a filha biológica deles. Eu tive amor e muitos
privilégios. E também tive uma excelente educação. Assim como meus pais
adotivos.
A adaptação
Depois
de dois meses trancados em casa, meus amigos estavam começando a ficar
desesperados. Eu estava conversando com a Sophia, minha melhor amiga, e ela
estava reclamando de tudo.
“Não
é tão ruim assim, Sophia”, tentei tranquilizá-la.
“Você
diz isso porque mora em uma mansão. Tente ficar 24h trancada com meu irmão
nesse apartamento minúsculo!” Sophia tinha um irmãozinho de cinco anos, o
Arthur, que eu considerava um amor, mas ela não pensava dessa forma.
“Será
que eu não poderia lhe visitar?”, ela me perguntou pela bilionésima vez.
“Bem
que eu gostaria que você passasse um tempo aqui comigo, mas você sabe como meus
pais são superprotetores. Eles me isolaram de tudo. Dispensaram também uma
parte dos funcionários. Só estão aqui os que moram conosco. Eles estão sendo
bem rigorosos com essa quarentena”, esclareci.
“Que
pena. E quanto ao Thales? Vocês estão realmente sem se ver?”
“Sim.
Meus pais me proibiram de vê-lo também.” E isso estava me matando por dentro.
“Que
chato”, Sophia me disse.
“Nem
me fale.”
Conversei
com a Sophia durante mais um tempo, e depois fui para a biblioteca. Eu sempre
gostei de ler, mas com tantas atividades no meu dia a dia, nunca sobrava muito
tempo. Agora eu estava com bastante tempo livre.
Havia
uma coleção de clássicos de capa dura que eu achava linda. Peguei Os Três
Mosqueteiros e fui me sentar numa poltrona que ficava próximo à janela com
vista para o jardim.
Nesse
momento, recebi uma mensagem do Thales que dizia:
“Estou
com taaaaanta saudade!”
Eu
também estava morrendo de saudades dele. Thales havia sugerido que nos
encontrássemos escondido. Eu estava analisando essa possibilidade, mas confesso
que considero muito difícil fazer algo escondido dos meus pais.
Sem
contar que havia riscos em beijar o Thales, ser contaminada e trazer o vírus
para os meus pais, que já tinham uma doença incurável. O meu maior medo sempre
foi perdê-los. Só que agora eu tinha medo de perder o Thales também com todo
esse tempo longe dele.
No
início da quarentena, nos falávamos o tempo todo por mensagens de texto,
vídeos. Ouvíamos música e sempre dávamos um jeito de incluir o outro no que
estivéssemos fazendo.
Agora
eu notava o Thales mais distante. Toda vez que conversávamos ele insistia em me
ver e eu não achava que isso fosse ser possível.
E
o pior era que não apenas o meu namoro estava estranho. Meus pais também. Eles
estavam preocupados com alguma coisa e não queriam me dizer o motivo. Insistiam
que tudo estava bem, no entanto, eu podia ver claramente que não estava.
Nada faz sentido
Ontem,
durante o jantar, eu perguntei aos meus pais o que estava deixando-os
preocupados. Depois de algumas respostas evasivas, eles decidiram contar a
verdade.
Eles
falaram que receberíamos alguém na família, o filho deles.
Isso
me deixou muito surpresa, pois, em 16 anos de vida, eu nunca soube que eles
tinham outro filho. Por que nunca falavam sobre ele? Pelo menos não conversavam
sobre ele na minha presença.
Alin
havia saído de casa para fazer faculdade, foi o que me disseram. E depois deram
o assunto por encerrado.
Fui
para o meu quarto cheia de questionamentos que não foram respondidos. Se Alin
tinha saído de casa para fazer faculdade, ele provavelmente teria 18 anos
quando foi embora. 16 anos já se passaram. Alvin teria 34 anos. Mas, essa era
praticamente a idade dos meus pais. Minha mãe tinha 38 anos e meu pai, 40. A
não ser que eles tivessem adotado Alin quando ele era já um rapaz. Por que meus
pais não queriam falar sobre isso? Por que nunca me falaram sobre meu irmão?
Por que não havia fotos dele em nenhum lugar da casa?
Aliás,
só havia fotos minha. Era como se a vida dos meus pais só tivesse começado depois
da minha chegada.
Fui
dormir cheia de pensamentos inquietantes.
Meus
pais sempre foram misteriosos, reclusos, mas eu sempre achei que fosse por
causa da doença. Não devia ser fácil não poder ver a luz do sol. No entanto,
eles não aparentavam ser infelizes. Principalmente minha mãe, que sempre foi
tão amorosa comigo. O tipo de mãe que lia histórias infantis e ensinava a fazer
guloseimas na cozinha. O tipo de mãe que abraçava e acalentava. Islany era uma
mulher incrível.
Arsen
era mais reservado, mas era gentil e amoroso comigo. Me levava para a
biblioteca e me contava histórias. Nunca sobre ele. Sempre histórias antigas.
Nunca
histórias sobre o filho...
Tive
pesadelos enquanto dormia.
A espera
Quatro
meses em quarentena. No final de semana, Alin chegou. Chegou durante à noite. E
eu entendi que ele tinha a mesma doença que meus pais.
Durante
o dia inteiro, Alin ficou trancado no quarto. Meus pais pareciam inquietos com
a sua chegada. Os empregados pareciam inquietos. O clima na mansão havia
mudado. Estava tenso.
—
Quando vou poder conhecer meu irmão? — perguntei durante o almoço que meus pais
não comiam.
Eles
quase nunca comiam. Mas, sempre fizeram questão de estar à mesa comigo.
—
Durante o jantar — respondeu minha mãe com seu tom de voz contido. Ela sempre
falava baixinho. Um tom mais alto que um sussurro.
Meus
pais eram assim. Nunca gritavam. Nunca demonstravam sentimentos intensos.
Sempre foram gentis.
Quando
terminei o almoço, fui para a biblioteca. Mesmo que não conseguisse me
concentrar na leitura, fiquei sentada com um livro em mãos, imaginando como
seria Alin. Qual seria a aparência dele?
Depois
de um tempo, larguei o livro e peguei o celular para conversar com a Sophia.
Durante a conversa, eu percebia que ela estava diferente, evasiva... O que será
que estava acontecendo com as pessoas? O período em quarentena estava afetando
todo mundo.
Thales
ignorou minhas mensagens. Eu nem sabia se ainda poderia considerá-lo meu
namorado. Claramente ele ficou chateado quando não aceitei me encontrar com ele
às escondidas. Mas, eu não podia arriscar trazer mais uma doença para os meus
pais.
Resolvi
tirar um cochilo até a hora do jantar. Eu não conseguia me concentrar em mais
nada mesmo.
Eu
sentia falta do Thales.
Eu
sentia falta dos meus amigos.
Eu
sentia falta da minha antiga vida.
Durante
quanto tempo eu teria que ficar trancada?
A Revelação
Durante
o jantar, Alin finalmente apareceu. Eu fiquei chocada com a sua aparência. Ele
era surpreendentemente lindo. Mas, o que me deixou perplexa, foi o fato dele
aparentar ter 16 ou 17 anos. No máximo, 18. Isso não fazia sentido.
Ao
perceber minha surpresa, Alin perguntou aos nossos pais:
—
Vocês ainda não contaram para ela o que eu sou? O que nós somos?
—
Alin, nos dê um tempo... — sussurrou minha mãe.
—
Querida, creio que não há mais tempo — disse o meu pai a ela. — A Isadora
percebe que as coisas não estão fazendo sentido.
—
O que eu preciso saber que vocês não estão me contando? — perguntei.
Foi
Alin quem me respondeu. Foi Alin quem me contou toda a verdade. E, de repente,
tudo fez sentido.
Meus
pais não eram como os outros pais.
Não
era o Xeroderma pigmentoso que mantinha os meus pais em casa durante o dia.
Meus
pais não podiam ter filhos biológicos.
Meus
pais mentiram para mim a vida toda.
Meus
pais não tinham a idade que me disseram que tinham. Por isso não havia fotos
deles em nenhum lugar.
Meus
pais tinham muitos e muitos anos de vida.
Meus pais eram vampiros.
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